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46ª Mostra de São Paulo: Bardo, Raquel 1:1 e Kevin

Foto do escritor: Carol BallanCarol Ballan

BARDO, Falsa crônica de algumas verdades


ESSA CRÍTICA CONTÉM SPOILERS


Pensando na figura do bardo da idade média evocada por Alejandro N. Iñárritu em seu novo filme Bardo - Falsa crônica de algumas verdades, se torna claro que toda a obra foi realizada como uma espécie de autobiografia que utiliza todos os recursos possíveis para contar sua história. Com música, imagens saídas de sonhos ou pesadelos, uma criatividade impressionante e brincando com os limites do absurdo pontuando críticas e autocríticas, o longa explora tal volume de possibilidades que se perde em alguns momentos.


Com poucos minutos de filme claro que Silverio funciona como um alter ego do diretor, apesar de funcionar em tela para qualquer pessoa que não conheça um pouco de sua carreira. O homem mexicano cujo trabalho é muito mais conhecido nos Estados Unidos, com medo de não ter estado perto o suficiente dos filhos, acusado de explorar o sofrimento alheio em seus filmes são claras autorreflexões, mas é através de um detalhamento dessa realidade que a obra se torna interessante.


Detalhes surreais como a cena inicial, de nascimento da criança que não quer ser parte desse mundo, inserções relacionadas à cultura mexicana e alguns de seus nomes esquecidos, ou até mesmo a falta de noção geográfica levam quem assiste a uma viagem absurda e onírica. Dentro dessa lógica interna, com regras diferentes do mundo real, são discutidos assuntos pertinentes, como a falta de clareza sobre a identidade nacional de imigrantes, relações familiares, luto e amor. Os sentimentos que são essenciais para que o filme funcione conseguem ser transmitidos, ainda que com um esforço um pouco maior da plateia. Mesmo sendo mais difícil se localizar do que em uma obra de estrutura mais linear, tanto a edição quanto a técnica impecável de fotografia e direção de arte conseguem manter o interesse do espectador.


É apenas em seu final, que cria uma lógica extremamente racional para tudo aquilo que estava sendo construído, que o filme perde completamente sua força. Ao utilizar o absurdo para criar uma mensagem e conseguir passá-la sem a necessidade de finais fechados, o diretor conseguiria transmitir a sua ideia muito melhor do que utilizando a racionalização de tudo o que foi criado. Invalida-se a construção realizada naquele momento, e cria-se a confusão que está sendo vista em sua recepção, dada a sua própria lógica interna totalmente quebrada.




RAQUEL 1:1


Vindo de uma safra de obras que reagiu imediatamente às eleições de 2018 e ao aumento do fanatismo religioso relacionado ao seu resultado. Entram aqui outros exemplos como Divino Amor e o documentário Fé e Fúria (que denuncia o que ocorreria antes mesmo das eleições). No entanto, o que o diferencia é a aproximação escolhida pela diretora e roteirista, que foca o longa-metragem na chegada de uma menina religiosa a uma nova cidade e seu sentimento crescente de que ela está recebendo um chamado divino.


Traçando um paralelo com a narrativa de amadurecimento de Carrie, A Estranha, é com esse viés que a obra explora quais são os limites da fé e do fanatismo. Com as camadas de seu passado sendo apresentadas ao mesmo tempo que sua nova vida vai se alterando, a tensão criada é bastante eficaz. Dois pontos essenciais na criação dessa tensão são a montagem, que utiliza muito o design de som para ligar as cenas, principalmente às que se relacionam ao plano espiritual, e a trilha sonora, composta exclusivamente para o filme e que o emoldura perfeitamente cena a cena.


O casting de Valentina Herszage e o trabalho entre atriz e diretora são outro elemento determinante no sucesso do longa. Com longos planos focados completamente na atuação da protagonista Raquel, Valentina mostra seu talento e permite que o espectador entre em seu mundo, confiando nela assim como o grupo de meninas que dela se aproxima. Por outro lado, a direção de arte vive trazendo o espectador de volta à realidade fora do filme. Em algumas cenas, como a em que Raquel organiza produtos na prateleira do supermercado com todos os rótulos virados para trás são um elemento que afasta o espectador da realidade criada em cena, porque o gesto parece absurdo dada a chave realista utilizada para contrapor os momentos espirituais. O mesmo acontece com feridas mal acabadas que fazem com que quem assiste se lembre da falsa realidade criada em tela.


Ainda assim, o filme consegue fazer suas críticas ao fanatismo sem atacar a fé, colocando ainda um forte elemento feminista em seu modo de fazê-lo. Considerando que a diretora está em seu segundo longa-metragem, é um excelente sinal para a sua carreira no cinema nacional.




KEVIN


Uma das grandes questões do cinema documental é a compreensão de que a vida não se adapta ao que o projeto deseja. E Joana Oliveira, idealizadora e diretora de Kevin, passou por diversos percalços para poder realizá-lo. Inspirada na sua amizade com a ugandense Kevin Adweko, ela imaginava gravá-lo em seu casamento em 2013, ocasião na qual Kevin a visitaria no Brasil. Por conta do nascimento da filha de Kevin ela não pode vir, e apenas em 2017 que a diretora decidiu ir para Uganda filmar o projeto e visitar a amiga.


É então a partir das intempéries da vida que o filme toma forma, sendo seu ponto mais interessante a capacidade de utilizar a amizade para criar a atmosfera intimista que de início se conecta com os espectadores. Além disso, percebe-se a possibilidade de explorar assuntos como o racismo estrutural de maneira direta e honesta, algo que seria muito difícil para a diretora que é branca; outras questões como a maternidade e suas dificuldades, também se tornam uma discussão acessível ao público. Impressiona o fato de uma amizade entre uma brasileira e uma ugandense que se conhecem na Alemanha gerar essa possibilidade tão rara para a diretora.


Em questão de forma, o documentário utiliza fórmulas conhecidas de obras documentais que pretendem um realismo, sendo interessante perceber como o posicionamento da câmera funciona perfeitamente a favor das cenas que estão sendo mostradas. A conversa, apesar de obviamente ter cortes, é editada de forma a parecer um longo e contínuo diálogo, não se tornando cansativa ao espectador por seu conteúdo rico. Utilizando a viagem como pretexto de filmagem, as mudanças geográficas se tornam naturais, causando impacto no espectador ao comparar cenários, mas não sendo fragmentada ao longo da obra.


Poder acessar essa conversa de duas mulheres de realidades tão diferentes e cujos caminhos se cruzaram é um ganho para os espectadores. Todas as outras qualidades do filme são mérito de técnicas de montagem e filmagem bem decupadas e organizadas, além da possibilidade de se registrar esse encontro.

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