La Chimera (Alice Rohrwacher, 2023, Itália)
Nessa fábula fantasiosa, Alice Rohrwacher dirige um romance surrealista afetivo com seu estilo excêntrico.
Arthur (Josh O’Connor) usa seu dom místico de encontrar artefatos em túmulos para buscar significado na vida longe de Beniamina (Yle Vianello), sua amada ex-esposa. Entre furtos e crises emocionais, ele questiona se vale a pena o recomeço frente ao apego do laço amoroso rompido.

Alice Rohrwacher é conhecida por seu cinema peculiar que constrói narrativas inusitadas e imaginativas, convidando o espectador a participar delas. Assim como no terno Lazzaro felice, a diretora nos guia em um micro mundo coberto pelo filtro vívido e pela direção de arte realista que contrastam entre si e resultam em uma estética surrealista. Os elementos sobrenaturais ganham forma com as alusões bucólicas que compõem os cenários e com a suave trilha sonora entre as cenas para processarmos o enredo. Tudo se costura atenciosamente de modo a nos ambientar nesse universo distante e nos conectar com esse personagem complexo, que por vezes aparece de ponta cabeça para reforçar seu deslocamento em relação ao campo radiante que está a sua volta.
Apesar do desfecho não ser tão conquistador quanto o restante do filme, ainda há singularidade no cativante humor distintivo e em seus personagens carregados de expressividade. Com destaque para Italia (Carol Duarte), que encanta por sua simplicidade de ver a vida e pelo passageiro romance que desenvolve com Arthur. Outro destaque é o próprio protagonista (bem performado por Josh O’Connor com o charme de sua timidez já vista em The Crown), um homem cheio de arestas assombrado pela ferida do amor não cicatrizado que flerta ora com a cura, ora com a autoflagelação. Esse núcleo central não só sustenta La Chimera como dá o aroma instigante que nos enreda durante toda a duração.
Portanto, La Chimera é uma bela aventura emblemática sobre a utopia de seguir em frente. Pode soar desconexa para alguns e muito envolvente para outros, mas se compromete com sua premissa fantástica do início ao fim.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
Ferrari (Michael Mann, 2023, EUA)
Entre possantes e amantes, Michael Mann engata a marcha em um mundo feito por e para homens.
Ferrari acompanha os dramas da vida pública e privada de Enzo Ferrari (Adam Driver), criador da marca que revolucionou a indústria do automobilismo de luxo. Lidar com cinebiografias de personalidades famosas demanda selecionar os fatos e partes da persona representada que entrarão ou ficarão de fora do roteiro e como essa execução se dará no audiovisual. Nessa representação, a direção de Mann dá ênfase ao arquétipo heteronormativo do personagem, que vive de mulheres e carros.

A partir do recorte do legado do personagem-título, o diretor encara os dilemas mais latentes do filantropo, como a cobrança por monetizar seu hobby e a paixão pela Fórmula 1 e seu casamento de fachada contra sua família ilegítima. Em meio a essa construção dramática de escândalos, Laura Ferrari (Penélope Cruz) e Lina Lardi (Shailene Woodley) são reduzidas à esposa ambiciosa à beira de um ataque de nervos e à amante apaixonada demais para buscar o que é do seu filho por direito, respectivamente. Enquanto isso, Enzo lida com o luto pela perda do filho criando um império carregado de polêmicas pela precoce morte de pilotos em suas corridas. Ele negligenciava covardemente ambas as famílias e as necessidades das mulheres em virtude do seu sonho de infância, algo que é olhado de forma complacente pela direção.
De outro modo, a transcrição dessa história para o cinema traz uma identidade básica. A parte técnica, como trilha sonora, montagem ou fotografia, seguem o padrão genérico das cinebiografias e freia o cinema de Michael Mann para englobar todas as fofocas que rondavam o protagonista. Diferentemente de Fogo Contra Fogo e Colateral, outras duas excelentes obras dele, Mann não contagia o público com a adrenalina de seu estilo, mas curva-se diante da narrativa. Quando finalmente o ritmo acelera no terceiro ato, o filme é interrompido com as explicações sobre o destino dos personagens e os créditos sobem.
Ferrari se finda em um bom resultado, contudo padronizado nessa onda de cinema propagandístico de grandes marcas e dos enredos das figuras controversas por trás dessas contribuições sociais.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
Vidas Passadas (Celine Song, 2023, EUA e Coreia do Sul)
Em sua estreia como diretora, Celine Song traz um amor platônico que vai da infância até a vida adulta.
Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo) tem uma conexão inseparável na infância, contudo a emigração dela para os Estados Unidos os afasta. Anos depois, eles se reencontram para dar um ultimato em sua relação. A cultura sul-coreana vem ascendendo nos últimos anos e o cinema é um de seus principais destaques. Diretores como Bong Joon-Ho e Park Chan-wook - celebrados com os recentes Parasita e Decisão de Partir respectivamente - endossam essa corrente com filmografias sólidas. Celine Song chega para integrar esse cinema com uma voz feminina necessária e um notável longa de estreia.

Vidas Passadas parece um melodrama básico em que torcemos para que o casal protagonista fique junto no final, entretanto sua realização polida acessa sentimentos muitos mais profundos no espectador. Desde a cena de despedida corriqueira após um dia de aula - com um enquadramento que indica que os personagens seguirão caminhos diferentes - até o esperado reencontro em frente a um carrossel - que comunica o laço emocional inerte e circular no qual eles estão - somos envolvidos por um sentimento platônico que realça a melancolia de um romance realista e maduro.
Em contraponto com Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, filme que fala sobre o desapego das relações amorosas de forma abrupta e é citado em algumas cenas, Vidas Passadas se apega a um amor que foi pouco vivido e é muito lembrado. A montagem opta por observar como a saudade flui nos dois individualmente para que o roteiro una, em um mesmo espaço e tempo, uma Nora e um Hae diferentes que tentam ser as pessoas de antes e reviver o que ficou para trás. Há uma honestidade e delicadeza no lento processo de superar o amor e retirar suas raízes do coração de forma cuidadosa para ambas as partes.
Dessa forma, Vidas Passadas descama calmamente as muitas esferas do envolvimento do casal com um olhar atencioso e sincero, enquanto se encaixa como um integrante desse cinema sul-coreano distinto (só pra não confundir com classe social) que vem se firmando cada vez mais.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
O Mal Não Existe (Ryusuke Hamaguchi, 2023, Japão)
Sob o ditado de que a pressa é inimiga da perfeição, Hamaguchi prova que a paciência é a matéria prima do seu cinema.
Takumi (Hitoshi Omika) é o faz-tudo de uma aldeia isolada do Japão, onde ele e sua filha Hana (Ryo Nishikawa) desfrutam uma vida pacata. Até que dois representantes de uma grande corporação de Tokyo chegam com a proposta de um acampamento moderno que mudará todo o ecossistema da região. Nessa dualidade entre natureza e ação antrópica, uma pungente história sobre perda da pureza é concebida.

Hamaguchi se tornou o terceiro diretor japonês a receber uma nomeação na categoria de Melhor Diretor do Oscar com o tocante Drive My Car. Sua ilustre carreira foi construída gradativamente assim como seu distinto cinema. O Mal Não Existe, novo longa do diretor, reafirma isso com uma experiência sensorial que tira os pés do espectador do chão, levando-nos a tocar as folhas caducifólias e os galhos secos dos altos das árvores, e nos colocando de volta no chão, onde sentimos a neve fria e ficamos à beira dos rios de água pura do vilarejo de Mizubiki. Esse processo relaxante nos faz compreender os anseios e preocupações dos moradores da comunidade quanto a brutalidade que a construtora pode trazer para a região com sua pressa destrutiva.
Para além de um conceito filosófico bucólico, O Mal Não Existe usa de técnicas para conectar o público com uma premissa remota. A edição de som capta os detalhes do ambiente e nos coloca no momento presente de cada cena. Esse aspecto entra em acordo com a trilha sonora sinfônica que cresce e preenche todo o espaço do cinema, causando uma reação brutal ao ser interrompida repentinamente em variados momentos da narrativa. A escolha estilística é uma representação sonora da harmonia da natureza que está ameaçada pela empreiteira e fica evidente com o desfecho que rompe com a inocência desse meio ambiente ingênuo por meio de um acontecimento chocante. Uma realização magistral do roteiro e direção de Hamaguchi.
Por fim, o ritmo paciente do longa demonstra que a afobação do mundo corporativo não é só inimiga da perfeição, como diz o ditado popular, mas também da qualidade de vida dos representantes, do bem estar da comunidade e da vida em seu estado natural.
Filme visto na 47a edição da Mostra de SP.
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