Retratos Fantasmas (Kleber Mendonça Filho, 2023)
É fácil compreender como Kleber Mendonça Filho se tornou um diretor querido de muitos festivais, inclusive Gramado, onde ocorreu o lançamento de seu mais recente longa-metragem, Retratos Fantasmas. Exibido como filme de abertura, é a primeira vez que um documentário ocupa esse espaço nos 51 anos de festival. Mas como o próprio diretor comentou na coletiva de imprensa, é difícil dizer que o longa-metragem se encaixe perfeitamente em uma caixa de gênero cinematográfico.

O que o diretor realiza é uma colcha de patchwork de suas memórias afetivas e sua relação com o cinema, o espaço de Recife e a história da cidade, comentando ainda sobre a sociedade brasileira e seus últimos avanços e retrocessos. Dividido em três partes, a primeira fala sobre o apartamento em que viveu (e gravou O Som Ao Redor), a segunda sobre a história dos cinemas de rua de Recife e a terceira contendo uma intervenção que beira o realismo fantástico e traz o encerramento perfeito para somar todas as ideias até então apresentadas.
Dentre as muitas discussões propostas, o que o próprio título cita são os retratos de pessoas que não estão mais ali, ou de reflexos desconhecidos que eram mais comuns na época de fotografias analógicas. Isso é válido tanto para o que é mais imaterial até o que é material, seja a mudança do espaço das cidades ou o cão do vizinho que faleceu. Essa linha condutora da obra dá a possibilidade de uma infinidade de pesquisas históricas e temporais, mostrando que, como o diretor inicia a narrativa citando, ele é filho de uma historiadora. Ele cita em coletivas que esse é “um filme de imagens achadas”, mas o trabalho da dupla de diretor e editor é o que torna essa literal colcha de retalhos em arte.
Durante a primeira parte do filme, vemos uma questão bastante pessoal do autor, quase como em um ensaio, revendo a quantidade de imagens existentes em seu apartamento de infância, adolescência e vida adulta. Percebem-se diversas nuances de seus trabalhos anteriores que talvez fossem inacessíveis, mas que demonstram a vida de um cineasta brasileiro. Para a plateia, gera a reflexão sobre a história do espaço em que se vive e das relações que se constrói a partir dele, com a humanidade e transitoriedade entrando pela tangente e conseguindo criar uma relação de compreensão, e não nostalgia.
Na segunda parte, isso se repete, mas através da análise primorosa de imagens de acervo e das experiências do diretor. Aqui, para uma cinéfila, é impossível não sentir nostalgia, ainda que nem espaço nem época sejam comuns entre a adolescência do diretor e a minha. A questão do espaço físico do cinema como parte importante da vida cultural da cidade entra como um dos pontos principais, e sua perda para as igrejas. Pensamos nas causas e consequências dessas mudanças, e aos poucos é possível compreender um pouco melhor o nosso próprio país.
Por fim, com o encerramento do filme, vemos um Kleber Mendonça Filho ator, atuando basicamente dentro de suas próprias histórias e memórias. É claro, ele se sai muito bem no papel, mas a figura do motorista de aplicativo representado por Rubens Santos traz o fechamento perfeito para a discussão proposta. O diretor mostra sua versatilidade ao trazer um filme completamente inesperado, reflexivo e autoral, com controle da audiência durante toda a sua extensão. Resta a nós aguardar seu próximo filme, Agente Secreto.
O filme estreia nas salas de cinema no dia 24 de agosto. Confira a programação na sua cidade.
Ângela (Hugo Prata, 2023)
Indo pelo caminho contrário à delicadeza dos outros filmes mostrados na sessão, Ângela traz uma versão estranha sobre a vida de uma mulher real, Ângela Diniz (Isis Valverde). A mulher, que foi morta com três tiros na cabeça e um na nuca, tem sua vida restrita ao momento em que ela conhece seu assassino, Raul Street (Gabriel Braga Nunes), até sua morte. Evita-se toda a sua vida pregressa e todo o julgamento de Raul, focado na vida sexual de Ângela e que levou à campanha “Quem ama não mata”, mote feminista importante da época.
Ainda que a roteirista Duda de Almeida tenha afirmado que “a pior coisa coisa que uma mulher pode ter é desejo próprio” durante a coletiva de imprensa, esse viés mais progressista se perde no audiovisual. Com cenas de sexo e agressão que parecem uma continuidade, ao invés de conseguirem transbordar a tragédia da mulher agredida elas parecem fetichizar o corpo da atriz da mesma forma que a vítima Ângela foi fetichizada em seu julgamento.
Em relação ao roteiro, além dessa confusão em relação ao relacionamento abusivo, pensa-se em um público que sabe mais sobre a vida da mulher real, faltando algumas peças para a compreensão de quem se depara com a história pela primeira vez. A acusação de sequestro, a guarda cedida em troca do desquite, e até mesmo o seu tratamento póstumo ficam fora da realidade do filme, não ficando clara nem sua origem nem sua repercussão.
Isis Valverde, no entanto, se destaca como atriz conseguindo trazer a complexidade da mulher que viveu a vida de acordo com suas próprias regras. Junto a um texto que não tenta transformá-la em santa, mas mostra também seus defeitos, cria-se a energia ao mesmo tempo apaixonante e triste que era esperada. Os atores de suporte também fazem um ótimo trabalho, e percebe-se o esforço em criar personagens complexos e com suas próprias histórias, dadas as conexões com a vida real.
A obra cai exatamente no olhar masculino (male gaze) citado por Laura Mulvey desde os anos 1970. Tenta-se sair da lógica machista através de um texto bem pensado, mas o uso da imagem e som acabam traindo sua essência. Apesar do diretor perceptivelmente não ter tal intenção, a lógica dominante se impõe e vemos uma repetição do padrão existente desde os mesmos anos 1970 do assassinato de Ângela.
O filme estreia nas salas de cinema no dia 31 de agosto. Confira a programação na sua cidade.
Curtas:
Yãmî Yah-Pá (Vladimir Seixas, 2023)
Em um breve comentário sobre o curta-metragem, o diretor e roteirista consegue trazer a estranheza de uma ficção científica distópica com a mitologia de povos originários de forma tão perfeita que é difícil desgrudar os olhos da tela. Aguardo ansiosamente que o filme vire um longa-metragem.
Deixa (Mariana Jaspe, 2023)
Neste filme, que ganhou bastante destaque pela atuação de Zezé Motta, há um contraste com Ângela no sentido de compreensão da necessidade das cenas de sexo para mostrar um afeto possível entre personagens negros. Com delicadeza, trata-se de uma noite específica em que uma história de amor chega ao seu fim.
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