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Crítica | Mostra de SP | Dahomey

Carol e Jean

Atualizado: 17 de nov. de 2024

Dahomey (Benin, França e Senegal, 2024)


Título Original: Dahomey

Direção: Mati Diop

Roteiro: Mati Diop e Malkenzy Orcel

Elenco principal: Gildas Adannou, Morias Agbessi, Maryline Agbossi, Habib Ahandessi, Didier Donatien Alihonou e Imelda Batamoussi

Duração: 68 minutos


Texto por Carol Ballan

Como brasileira, em uma viagem a Portugal, foi inevitável refletir sobre o ouro existente em suas igrejas e o quanto disso veio da exploração colonial do Brasil, com mão de obra escravizada e cujos frutos materiais foram quase totalmente refletidos para a Coroa Portuguesa. Do mesmo modo, indo a um museu britânico é possível encontrar partes de elementos egípcios, e todos esses saques culturalmente aceitos naquele momento por conta do colonialismo ou neocolonialismo permanecem como peças expostas apenas para mostrar o tamanho e influência que aqueles países já tiveram.

reflexo da estátua repatriada em enquadramento de garoto

Felizmente, essas visões de mundo estão, aos poucos, sendo alteradas, com movimentos tanto de retornar obras de arte e itens religiosos para seus países de origem quanto de compreender a cultura de maneira mais ampla. Se no ano passado pude assistir Homecoming no Festival de Toronto, que trata do retorno de itens sagrados para a comunidade Sámi, este ano surge Dahomey, mostrando o processo semelhante de retorno de 26 artefatos para sua terra original, em Benin.


Se as ideias são parecidas, os filmes não poderiam ser mais diferentes. Homecoming foca em uma narrativa individual, de uma mulher que está documentando o seu processo de recuperar um elemento que ainda é muito sagrado para ela e que tem significado especial para a sua família. Dahomey explora um aspecto muito mais coletivo e político do assunto. Ele busca a compreensão desse movimento de retorno da França para Benin tanto como manobra pós-colonial, quanto o recebimento do país dessas peças cujo significado já é esquecido por parte da população após décadas fora do país. Discute-se o significado das obras na sociedade atual, assim como quais serão as pessoas que terão acesso a elas, e até mesmo o ato de mantê-los em um museu em Abomey, sendo que a população do país não tem o hábito de visitar museus.


O filme se divide em três sub-narrativas. A dos franceses, que estão removendo essas obras do museu em um projeto que mistura um movimento bastante industrial com a delicadeza necessária para que os objetos cheguem bem ao seu destino, uma discussão e a exibição das peças na sua chegada de volta ao lar, e os pensamentos do Número 26, uma representação do Rei Ghézo. Ouvimos seus pensamentos sobre todo o processo, ajudando a compreender melhor os impactos graves que aconteceram na cultura norte-africana por conta da Europa. Apesar de todas as partes serem igualmente interessantes para o filme, esta é a mais inventiva, conseguindo sair da estrutura mais óbvia documental e partindo para algo mais artístico e poético.


Dahomey é um filme essencial para o século XXI, tanto nas discussões sobre reapropriações das nossas próprias culturas, quanto pela mistura de linguagens e cortes rápidos que é tão característica desse momento no mundo, onde telas se sobrepõem e pouco pensamos nos nossos arredores. 


Texto por Jean Werneck

Documentário senegalês discute as múltiplas facetas da reapropriação cultural enquanto inova no formato e nas abordagens do gênero.


Regressando ao seu território de origem, onde hoje se situa a República de Benim, uma remessa de relíquias do Reino de Daomé finalmente tem sua alma liberta ao deixar a França, que saqueou os artefatos do povo em 1892, durante uma das fases do imperialismo europeu no continente. Enquanto a reapropriação ocorre, debates sobre a intenção dessa reparação histórica e a conexão das novas gerações com sua ancestralidade se intensificam entre alunos da Universidade de Abomey-Calavi.



Depois de assistir a Dahomey, você provavelmente ficará curioso para saber quem dirigiu o documentário e para salvar outras obras da cineasta na sua watchlist do Letterboxd. Portanto, já marque este nome: Mati Diop. Em 2019, ela se tornou a primeira diretora negra a ter um filme concorrendo à Palma de Ouro no Festival de Cannes, com o longa Atlantics, e este ano levou o Urso de Ouro do Festival de Berlim com o segundo longa-metragem de sua carreira. Contudo, muito além dos prêmios, o que marca o trabalho de Diop em Dahomey é o modo como a diretora, roteirista e produtora do projeto trata temas atuais e a originalidade temática e formal com a qual o faz.


Um dos questionamentos recentes sobre o imperialismo é que os países colonizadores não se apropriaram apenas das terras e dos povos originários das colônias, mas também de sua história e cultura. Como diz um dos estudantes nas rodas de debate: “O que foi saqueado há um século foi a nossa alma”. Com o tempo, a independência foi proclamada e as correntes materiais foram quebradas, mas a herança afetiva e o vínculo desses povos com seus ancestrais ainda precisam ser resgatados.


Outras produções já tentaram se aprofundar nesse cenário histórico, como o brasileiro Tesouro Natterer, de Renato Barbieri, que mais justifica que problematiza a reparação cultural feita pelas nações colonizadoras. Dessa forma, poucas obras trouxeram ao cinema uma reflexão tão madura e complexa sobre o tema quanto Dahomey. É interessante como a direção e o roteiro de Mati Diop exploram o assunto em nuances. A proposta inusitada e criativa de acompanharmos a narrativa pela perspectiva onisciente e mística dos artefatos culturais repatriados gera estranhamento em um primeiro momento, mas logo depois fascina com a almejada liberdade conquistada. Também acompanhamos breves discursos de autoridades de Benim e de outras nações próximas, celebrando a chegada do patrimônio como um avanço na luta do movimento anticolonial. Em contraste, os jovens universitários encaram essa atitude como uma possível estratégia política do líder francês e demonstram indiferença por terem crescido desconectados da história de seus antepassados. Essa pluralidade de pontos de vista nos oferece uma noção ampla e complexa do tema, abordado com concisão e eficácia em apenas oitenta minutos de duração.


Dahomey escapa ainda do formato tradicional que, por vezes, impede o gênero documental de inovar. Em vez de trazer documentos históricos e preencher as lacunas com entrevistas de especialistas ou personagens, o longa senegalês constroi uma ambientação imagética, ora colocando a câmera sob a perspectiva de objetos inanimados, ora contemplando o que restou do Reino de Daomé, apesar das cicatrizes do passado. A montagem fluida e eloquente é acompanhada por uma trilha sonora potente e envolvente, onde até mesmo a tela preta e o silêncio carregam significado.


Por fim, Dahomey ecoa argumentos contundentes sobre a importância da memória histórica e o reencontro com as raízes. Ele nos convida a pensar nas feridas abertas do passado e na urgência de restituir a dignidade roubada a tantas culturas. É um chamado para que não apenas reapropriações culturais ocorram, mas para que, com elas, a identidade e a resistência desses povos também renasçam.



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