Os Enforcados (Brasil e Portugal, 2024)
Título Original: Os Enforcados
Direção: Fernando Coimbra
Roteiro: Fernando Coimbra
Elenco principal: Irandhir Santos, Leandra Leal, Pepê Rapazote, Irene Ravache, Stepan Nercessian e Augusto Madeira
Duração: 123 minutos
Distribuição brasileira: Paris Filmes
Em dobradinha com Leandra Leal, novo longa de Fernando Coimbra traz trama Shakespeariana com crítica à ascendente elite do jogo do bicho.
Construindo a casa dos sonhos em um nobre bairro carioca, Valério (Irandhir Santos) e Regina (Leandra Leal) se sentem no topo do mundo lucrando com o negócio da família: o viciante jogo do bicho. Contudo, a verdade vem à tona, e eles descobrem que a única herança familiar a que têm direito são as dívidas e os esquemas que sustentam seus luxos. Até que Regina tem uma ideia traiçoeira para que o casal dê a volta por cima, e o plano fatal os leva a uma sequência de crimes erráticos e irreversíveis.

Há pouco mais de uma década, estreava O Lobo Atrás da Porta, primeiro longa da enxuta carreira de Fernando Coimbra como realizador, que fez sucesso mundial no TIFF (Toronto International Film Festival) e consolidou uma parceria potente entre Coimbra e Leandra Leal, protagonista do thriller nacional do diretor. Este ano, a dupla retornou a Toronto e percorreu o circuito de festivais brasileiros com Os Enforcados, um thriller tragicômico que descama as figuras moralmente devassas que enriquecem com a máfia dos jogos de azar, tudo isso com uma sofisticação formal e uma narrativa ironicamente afiada.
A base para o roteiro de Os Enforcados é inspirada em uma das peças mais cultuadas da história: Macbeth, de William Shakespeare. É palpável a euforia, ambição e dissimulação de Valério e Regina, que remetem a Lady Macbeth e seu marido. Ambos os casais são consumidos pela sede insaciável de poder e ascensão social, dispostos a fazer de tudo para alcançá-los. No caso de nossos protagonistas, isso inclui transformar um parente da família em um “fóssil” escondido atrás da parede da sala de jantar. Contudo, mais do que uma simples referência, o roteiro de Coimbra subverte o que já conhecemos sobre a saga do general e sua dama, ao dar protagonismo à personagem feminina e colocar a figura masculina em papel secundário.
Regina, a Lady Macbeth carioca, é quem recebe a "profecia" e, consequentemente, a maldição, revelada não por três, como na peça original, mas por apenas uma bruxa — sua própria mãe, interpretada por Irene Ravache, que rouba a cena com seu carisma e tira gargalhadas do público a cada aparição. Leandra Leal traz à personagem um ar sensitivo e passional, que confere um caráter imprevisível e místico a suas ações após cada reviravolta, intensificando a tensão do thriller policial. Em contraste, Valério é um homem acovardado, cuja autoafirmação rústica é pouco convincente. Ele só se sente seguro para cometer absurdos ao adotar uma fantasia fetichista, encenando o papel de um ladrão barato que se envolve com a própria esposa. Esses ataques sexuais perversos trazem algumas das cenas mais desconfortáveis e brutais do filme, mais uma faceta dos trambiqueiros maléficos.
Outro aspecto narrativo perspicaz de Os Enforcados é o uso dos bares pé-sujo e da lavagem de dinheiro da máfia de segunda categoria do Rio de Janeiro como pano de fundo. A realidade dessa classe é evidente: cada vez mais, essas figuras não apenas deixam de esconder suas práticas, como as exibem de forma espalhafatosa. Coimbra expõe esses indivíduos endurecidos, ridicularizando-os com seu cinema elegante, prenunciando o destino que os aguarda. A fotografia é dominada por tons de verde, que contornam o figurino e a cenografia luxuosa, e de vermelho, usados para intensificar as cenas de violência. A trilha sonora amplifica a experiência com seus acordes graves e cortes secos em conjunto com a edição de som, que é tão detalhada que podemos ouvir até o som das cigarras ao entardecer. Isso sem contar os planos emblemáticos, que remetem a uma forca, como um guindaste filmado ao longe ou os fios da obra pendurados na altura do pescoço dos personagens. Trata-se de uma mise-en-scène fatalista, na qual nada está fora do lugar.
Entre tantos elementos expressivos, Os Enforcados peca pelo excesso de plot twists no ato final, o que por um instante decai a qualidade, sem, no entanto, comprometer o alto padrão da obra como um todo. Toda a corrupção, afinal, fica para Valério e Regina e sua crise moral, que, como indicado pela frase de abertura, após uma abundância babilônica recai sobre eles com a mesma intensidade, devolvendo-os ao buraco de onde venderam suas almas para sair.
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