Texto por Carol Ballan:
O cinema é uma arte que adora se auto-referenciar. Não está muito longe das suas colegas pintura e até mesmo da literatura, mas talvez por ser mais acessível para quem consome, percebe-se que pelo menos uma vez ao ano surge um novo filme que tenha como contexto a produção de um filme, uma biografia de um astro de cinema ou alguma outra criação que ajude a debater esta arte tão amada.

Desta vez, através de uma trama um tanto complexa, é discutida a atuação. Elizabeth (Natalie Portman) é uma atriz que busca Gracie (Julianne Moore), mulher que inspira a personagem que ela vai interpretar, para se inspirar e poder criar uma personagem mais complexa. Então ela passa um tempo com a família dela para compreender o dia-a-dia e as particularidades dessa família peculiar, dado que o relacionamento entre os pais se iniciou através de um crime, no qual Gracie abusou do na época menor de idade Joe (Charles Melton). A trama ocorre neste período de tempo de semanas, e através do olhar de Elizabeth.
Essa é uma escolha essencial para que a obra não caia em um poço de mal gosto ou espetacularização de crime. O crime não é diretamente retratado, mas ao mesmo tempo é sempre mostrado como algo moralmente errado, felizmente. Esta não é, em nenhum momento, a discussão suscitada pelo longa, mas sim como se dá esse relacionamento, agora legalizado, com um pai com uma enorme diferença de idade da mãe, e como se constitui a vida desta mulher que vive com a consciência de ter criado esta situação.
É raro que filmes que mostram uma mulher moralmente dúbia consigam fazê-lo com a maestria que Haynes e Moore alcançam. Na medida entre a ingenuidade que Gracie alega e a criação do relacionamento nada saudável que os espectadores veem, é criada uma personagem que parece tão absorta nas próprias mentiras que não consegue se desvincular da persona que criou para si. Seu egocentrismo e narcisismo são tão grandes que até a busca de Elizabeth se mostra perplexa em entendê-los - afinal, narcisistas costumam conseguir manipular suas vítimas. Entre os extremos, sem nunca ser tratada como santa ou como pecadora, é o viés de como enxergar essa história que a torna tão atraente. Portman, que também é produtora do filme, tem o seu arco de transformação na medida em que começa a entrar nessa personagem, assim como Melton consegue desconstruir a visão de pai resoluto para um jovem em uma vida que não faz nenhum sentido para si mesmo. A trinca de atuações, sob talentosa direção, é o ponto mais alto do filme - e não se esperaria nada menos de um filme que fala dos pormenores de atuar.
Chama também a atenção a direção de arte, que é um dos pontos já conhecidos da direção de Haynes. Junto ao diretor de arte Sam Lisenco, cria-se uma transformação em Elizabeth que é tão sutil, com uma pequena diferença a cada plano, que quando chega ao final se mostra completa e assustadora. Sem a necessidade de próteses, mas trabalhando com a atuação e caracterização, percebe-se como o processo da atriz afeta a sua própria vida pessoal.
E há ainda um equilíbrio dentro da própria obra, que está tocando em temas importantes e consegue fazê-lo de maneira quase divertida. Há momentos no filme em que é impossível não rir, ainda que o drama e a sensação de desconforto estejam sempre presentes. É uma obra cinematográfica quase impossível de ser construída de maneira respeitosa, mas que mesmo assim conseguiu fazê-lo.
Texto por Jean Werneck:
Natalie Portman passa de lagarta a borboleta no processo de concepção artística de Todd Haynes.
O caso de pedofilia entre um garoto de treze anos e uma mulher de trinta e seis vira um escândalo de escala nacional nos EUA. Anos depois, uma atriz acompanha a rotina dos dois envolvidos, que vieram a se tornar um casal quase típico suburbano, para dar vida no cinema a essa história real. A temática do amor proibido foi abordada por Todd Haynes em Carol (2015) com a dupla de protagonistas interpretadas por Cate Blanchett e Rooney Mara, respectivamente. Em Segredos de um Escândalo, o diretor retorna às mesmas diretrizes com Julianne Moore e Natalie Portman.

As bases dessa linguagem cinematográfica incomunicável de Haynes se devem a sua inspiração no olhar voyeurístico que ele reproduz do clássico Um Corpo que Cai (1958) e na atmosfera hollywoodiana recortada de Cidade dos Sonhos (2001). A partir desse cinema, que transmite mais nas imagens do que nas palavras, a direção cria uma tensão rígida entre Gracie - com uma performance de tom manipulador de Moore - e Elizabeth - com uma interpretação fatal de Portman. Reforçada pela trilha sonora dedilhada em acordes firmes no piano, a tensão passa a se tornar palpável nos detalhes da mise-en-scène. Os reflexos espelhados aos poucos tornam Elizabeth a cópia exata de Gracie, revelando até mesmo as nuances sombrias que ela tenta maquiar para si mesma. Além disso, Todd Haynes posiciona seus personagens frente a câmera em ângulo descentralizado, como se faltasse outra pessoa na composição do enquadramento. É a partir dessas escolhas sutis e significativas de direção que Segredos de um Escândalo impacta o espectador.
O roteiro ainda ganha eloquência com a presença inevitavelmente transformadora de Elizabeth no relacionamento de Gracie e Joe (Charles Melton). A obstinação da atriz em captar a essência de sua personagem acaba revelando as partes nebulosas desta para seu marido e seus filhos. O filme discute se a arte pode apenas observar sem se inserir na realidade para ser concebida. Fica evidente que isso não é possível. O envolvimento pessoal da atriz com a família da mulher em que está se personificando traz consequências avassaladoras e irreversíveis para ela. Desse modo, o enredo nos guia para a conclusão de que a arte não só se insere na realidade, como a modifica para retirar algo orgânico dela. Nesse ponto, os insetos, as flores e as folhas do jardim - nos quais a câmera fecha o close em determinadas cenas - representam a organicidade destrutiva que a natureza da arte pode oferecer.
Elizabeth sai do casulo e cria asas para performar o caso apavorante com a maior veracidade possível diante das câmeras. Surpreendentemente apavorante.
O filme está sendo distribuído no Brasil pela Diamond Films. Verifique as sessões na sua cidade.
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