Raquel 1:1 (Mariana Bastos, 2022)
Muitas vezes, um dos diferenciais de assistir um filme durante um festival e fazê-lo em outra situação é a atenção que se pode dar a uma obra quando se vê três ou quatro filmes em um dia, ou de poder se dedicar completamente somente àquela experiência cinematográfica. E poder rever Raquel 1:1 a convite da O2 Filmes por conta do lançamento da obra em circuito comercial neste fim de semana permitiu a criação de uma nova visão sobre o filme.

Se em um primeiro momento o que mais me chamou a atenção foi a falta de recursos, levando a cenários e decorações de locações que pareciam desfalcadas, o segundo olhar permitiu justamente a compreensão da sensação de deslocamento que a protagonista está passando. No filme, Raquel (Valentina Herszage) acaba de se mudar para uma cidade do interior com seu pai Hermes (Emílio de Mello), e se facilmente se descobre que ela passou por uma situação traumática com a morte de sua mãe, as informações sobre o ocorrido só serão apresentadas ao longo do filme.
A primeira surpresa é ao perceber que o primeiro local que a jovem procura fazer amigas é na igreja, mostrando interesse tanto na religião quanto na comunidade que a cerca. Mas logo no início do filme, ao entrar em uma caverna, ela começa a receber sinais de que deve reformular partes da religião - e é a partir daí que surge um realismo fantástico que permeia a obra e dá seu sentido lírico. Entre febres e chagas, surge uma profeta que deseja reformular a religião para adequá-la aos tempos atuais.
Os cenários bucólicos acabam referenciando o pouco que a humanidade mudou ao longo dos milênios. Ao mesmo tempo, a perseguição à menina e a violência contra as mulheres que ela encontra em todos os lugares acaba referenciando a perseguição aos primeiros cristãos. Cria-se adequadamente um cenário realista quanto à vida de uma adolescente, retratando de maneira ousada o momento em que ela passa a criar suas próprias ideias e valores a partir de sua experiência. E o quanto o mundo atual ainda não está preparado para as mulheres que ousam enfrentar o status quo. Herszage, em particular, é o elemento que realmente faz a trama funcionar, com uma atuação que leva todos os elementos mágicos como extremamente sérios e reais, e permite que se crie empatia com a personagem mesmo sem se saber muito sobre sua história.
Assim, o filme ganha força através de seu subtexto e suas metáforas relacionadas à religião, algo que não foi notado por mim em meio ao cansaço causado pelo festival. Fico feliz em revê-lo e conseguir compreender melhor seus símbolos, sendo também um aprendizado pessoal sobre a capacidade e possibilidade de mudar de ideia.
O filme está sendo distribuído pela 02 Play. Verifique as sessões na sua cidade.
Um Filho (Florian Zeller, 2023)
AVISO: Esse filme trata de depressão e transtornos mentais.
Apesar de uma longa carreira como escritor de peças de teatro, o roteirista e diretor Florian Zeller passou a ser mais conhecido fora da França quando lançou Meu Pai (2021), o premiado filme sobre a relação de Anthony (Anthony Hopkins), um senhor com Alzheimer, com sua filha Anne (Olivia Colman). Assim, o lançamento de seu filme seguinte, Um Filho, já integrado ao sistema de produção estadunidense, foi extremamente aguardado.

Tratando inicialmente da paternidade através da história de Peter (Hugh Jackman), que acabou de ter um filho com Beth (Vanessa Kirby), ele passa também a falar sobre a depressão na adolescência com a chegada de Nicholas (Zen McGrath), seu filho do primeiro casamento que está em uma situação mental fragilizada. Assim, o foco permanece nessa relação entre pai e filho, com o intermédio do transtorno psiquiátrico.
Ao contrário de Meu Pai, não existe nenhuma técnica narrativa ou de edição que simule o transtorno depressivo, o que foi o maior êxito da primeira obra. Pelo contrário, utiliza-se um estereótipo já muito reproduzido de quem sofre com a doença, além de utilizar alguns recursos narrativos que apenas pioram a visão típica sobre transtornos mentais. É compreensível a questão levantada sobre o relacionamento do pai com os dois filhos, e se não se abusasse tanto de um recurso melodramático, este seria um excelente caminho para a discussão. Ao invés de investir em uma narrativa que traga alguma boa possibilidade para o alívio do sofrimento, o caminho narrativo mais fácil é sempre escolhido e o roteiro é afetado. Há um nível de exploração do sofrimento de Nicholas que é perverso com qualquer pessoa que já lidou com alguém em depressão.
Apesar de ser um filme tecnicamente correto, com uma câmera que parece flutuar pelos personagens em referência ao estado de desconexão com a realidade, existe um retrato inaceitável sobre a depressão na juventude, com todas as frases ditas por McGrath parecendo clichês. Até em momentos extremamente dramáticos, é difícil empatizar com o sofrimento mostrado em tela tanto pelo lado do pai quanto do filho.
É bastante decepcionante observar como a delicadeza e sofisticação de Zeller em relação ao Alzheimer não conseguem ser transpostas para outro cenário. Para os fãs de Meu Pai, resta aguardar seu próximo longa-metragem para compreender se a exceção foi o filme excelente ou se foi essa nova obra.
O filme está sendo distribuído pela Diamond Films. Verifique as sessões na sua cidade.
Skinamarink: Canção de Ninar (Kyle Edward Ball, 2023)
Se uma das principais características do gênero terror é causar medo em quem o assiste, o diretor Kyle Edward Ball acerta em cheio com seu longa-metragem de estreia Skinamarink: Canção de Ninar. Através de uma atmosfera que simula um pesadelo infantil, sabemos aos poucos da história de duas crianças cujos pais desapareceram no meio da noite, e que observam enquanto as janelas e portas de sua casa também desaparecem.

Se a sinopse parece confusa, esse é um reflexo da forma que o filme utiliza, experimentando com câmera e sons para criar a simulação do pesadelo infantil. Desde a imagem granulada, simulando as câmeras caseiras dos anos 1990 nos quais se passa a narrativa, até o fato de nunca vermos os rostos dos envolvidos, todos os elementos audiovisuais são utilizados para inserir o espectador de maneira imersiva no que está acontecendo em tela. Os sons são extremamente imersivos, as imagens são quase hipnóticas e, para o espectador brasileiro, remonta à época em que o maior medo de quem utilizava a internet para acessar o site assustador.com.
Essa é uma escolha ousada que divide o público que o assiste de maneira extremamente polarizada: há os que se apavoram com a imersão e conseguem embarcar na jornada proposta, e há quem se sinta extremamente entediado com a falta de ação e até de palavras ditas que vemos na tela. No entanto, é quase impossível sair da sessão sem ter uma reação bastante profunda ao que está sendo proposto. Em uma situação na qual o gênero está bastante dependente de franquias que apostam nos sustos e no excesso de ação para atrair o público, o filme vai completamente contra o senso-comum e desafia o espectador a completar a narrativa e propor a sua resolução ao enigma apresentado em tela.
Apesar dos diversos vídeos que explicam o final do filme, vale a pena conversar sobre o que foi assistido na saída da sessão, antes de procurar esse tipo de interpretação que, como arte, deve ser bastante individual.
O filme está sendo distribuído pela A2 Filmes. Verifique as sessões na sua cidade.
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