Ruby Marinho: Monstro Adolescente (Kirk DeMicco e Faryn Pearl, 2023)
Há uma nova e feliz onda de filmes de animação nos quais há uma protagonista feminina que realiza aventuras, e é bom perceber que a Dreamworks está entrando nessa onda (trocadilho proposital) e se atualizando. Ruby Marinho: Monstro Adolescente é sua primeira obra com uma protagonista feminina, e desde o primeiro momento é perceptível que esse desafio é levado a sério, com a explicação desse mundo que subverte as regras do conhecimento comum.

Nesse universo, krakens são seres marinhos do bem que desejam apenas proteger os mares, enquanto as sereias são as vilãs que tentaram romper com essa paz. Então, Ruby (Agatha Paulita) parece uma garota comum, com interesse em matemática e com um crush no skatista Connor (Gabriel Santana). Nisso se esconde a realidade de que toda a sua família é formada por krakens que decidiram não morar mais no mar devido aos seus perigos, um segredo mantido pelos seus pais com a proibição de que os filhos tenham contato com a água. Mas Ruby deseja muito ir ao baile de fim de ano, que será em um navio, e é a partir disso que sua trama de descoberta se inicia. Quando ela cai na água e descobre o que é, se inicia uma saga épica de autoconhecimento e laços familiares.
Ainda que a trama desenvolvida seja clara demais, a forma que a história é narrada faz com que ela mereça maior atenção. A Dreamworks faz o que tem de melhor, com piadas com Ariel e uma vida marinha que teria tornado o novo live action de A Pequena Sereia mais atrativo. Então, essa narrativa sobre a garota que está em uma fase explosiva de hormônios e que tenta encontrar o seu lugar no mundo passa a uma comédia corpórea, com a falta de controle que ela passa a ter. E pior do que isso, ela passa por uma crise familiar com sua mãe Agatha (Adriana Pissardini) e a Vovó (Patrícia Scalvi) recém-descoberta, com todo o segredo sobre sua origem.
Apesar de lembrar bastante a transformação brutal de Red: Viver é uma fera!, a transformação física que acontece é visualmente muito gritante, aqui parecendo mais criar um poder do que limitar a vida da personagem. O brilho ganhado faz a conexão com o momento de começar a separação dos pais. Toda a vida terrestre e aquática brilha e torna o universo interessante, mesmo com os personagens secundários sendo muito superficiais, como seus amigos do colégio. Conhecendo o estúdio e sua produção exaustiva de franquias, é possível imaginar que haverão novos filmes nesse cenário.
O que torna o filme uma obra dos anos 2020 é a ação que a personagem tem em descobrir o seu próprio destino, além de algumas brincadeiras com a tecnologia que são engraçadas, mas podem envelhecer mal. E mais do que agir em prol de si mesma, a construção da confiança familiar em uma fase em que se cria maior independência é uma temática recorrente e que faz sucesso justamente pela relevância que possui. O filme pode deixar os adultos um pouco entediados, mas certamente fará diferença na mentalidade de garotas pré-adolescentes.
O filme é, por vezes, direto demais, e parece não prestar atenção em detalhes se preocupando apenas com a piada. Mesmo assim, pela história bem contada e criada em um universo interessante de inversão de valores, vale o programa de família e cria uma boa narrativa sobre confiança e independência. É exatamente o tipo de filme que eu gostaria de ter acessível quando eu era mais nova.
A distribuição do filme no Brasil está sendo feita pela Universal. Verifique a programação na sua cidade.
A Sindicalista (Jean-Paul Salomé, 2022)
Aviso Importante: O filme retrata violência sexual. Não é recomendado para pessoas sensíveis ao tema.
Dentro do cinema francês, que talvez seja um dos mais importantes cinemas europeus para a história do cinema mundial, Jean-Paul Salomé não é um diretor de destaque, ainda que trabalhe de maneira contínua desde 1994. No entanto, em seus dois últimos filmes ele se juntou à atriz Isabelle Huppert, que ajudou na criação e exploração de suas protagonistas femininas, primeiro em A Dona do Barato (2020) e em seguida com A Sindicalista.

Em seu novo projeto, é contada a história da sindicalista Maureen Kearney (isabelle Huppert), que se encontra em uma situação de muitos encontros infelizes quando vai defender funcionárias de uma usina nuclear de uma empresa francesa, Areva, que se localiza na República Tcheca. Exatamente por sua posição de oposição a personagens grandiosos da política francesa, ela acaba recebendo ameaças e uma agressão física e sexual. Apesar de parecer fictício, é um drama baseado em uma história real e importante nas relações internacionais do país.
Justamente por conseguir fazer a ligação entre as personalidades existentes na mesma mulher que a obra funciona bem com Huppert como protagonista. Existe um equilíbrio entre a mulher centrada no trabalho e muito competente e a pessoa fragilizada após ataques, mas que escolhe continuar lutando que é um grande desafio, mas a excelente atriz consegue trazer as duas personalidades à tona em momentos diferentes. Isso funciona em conjunto com um roteiro que lhe dá bons momentos para trabalhar, como nas cenas em que a sindicalista joga cartas, que se repetem ao longo do filme.
Essas cenas generosas com os atores e possivelmente toda a direção são refletidas também em personagens secundários que não são indiferentes para o andamento da história. Grégory Gadebois, que interpreta o esposo de Kearney Gilles Hugo, também tem um destaque que revela as camadas da personalidade de um homem que vê a mulher ao seu lado ameaçada, e muitas vezes não compreende suas ações.
Algo que também atrai espectadores para o longa é a sua capacidade de trabalhar com diversos temas complexos ao mesmo tempo sem o excesso de diálogos explicativos. Fala-se do avanço econômico chinês, a situação de Maureen e do machismo estrutural francês através do mesmo conflito, mas conseguindo analisá-lo em diferentes instâncias. Por não tentar disfarçar os problemas, mas sim encará-los com seriedade, há um ganho narrativo importante. Há um grande destaque para uma discussão muito latente sobre as “boas vítimas” do abuso, e pela percepção diferente do que esta seria para a França e para o espectador brasileiro, levantam-se ainda mais questões sobre a violência contra a mulher.
Tudo isso se junta para contar uma história importante e invisibilizada, como os créditos finais que contam o andamento do caso deixam claro. Como um filme de denúncia, ele consegue trazer à tona todos os elementos que se propõe.
A distribuição do filme no Brasil está sendo feita pela Synapse Distribution. Verifique a programação na sua cidade.
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