Fervo (Felipe Joffily, 2023)
Quando pensamos em comédias brasileiras, existe um lugar-comum dos anos 2000 que aos poucos está sendo desconstruído com filmes como Minha Mãe é Uma Peça e Quem Vai Ficar Com Mário. Com Fervo, a nova obra do gênero que estreia este fim de semana nos cinemas, é dado mais um passo em relação a este processo, mas ainda são perceptíveis muitos traços da atuação e teledramaturgia. Com uma ótima ideia de roteiro de um casal heterossexual de arquitetos que compra uma casa afastada no Rio de Janeiro para reformar e descobre que a casa é assombrada por um homem gay, uma lésbica e uma drag queen, existe bastante espaço para o humor. Somado a isso existe a questão de quase toda a obra se passar em apenas uma locação, o que é desafiador mas também auxilia no exercício da criatividade, como dito pelo ator Gabriel Godoy antes da cabine de imprensa.
É interessante que este seja o primeiro conteúdo Star Original realizado no Brasil, ainda mais ao considerar o clima conservador aflorado recentemente no país. A obra é interessante do ponto de vista da representatividade, evitando alguns dos clichês mais comuns ao falar da comunidade LGBTQIA+ e até sobre as expectativas da heterossexualidade. Dois personagens, inclusive, conseguem fugir bastante do padrão representativo da mídia brasileira: o homem bissexual, normalmente invisibilizado, e a drag queen, cuja arte foi ignorada e levada a um espaço de marginalidade ao longo dos anos 1990 e 2000. Em relação à arte drag, o acerto se inicia no casting de Rita von Hunty, que além de artista é pesquisadora e militante, já quebrando estereótipos.
Ainda que haja um discurso representativo e que consegue navegar pelas emoções levando o espectador rapidamente ao riso ou ao choro, existem diversos aspectos técnicos nos quais a obra se perde. O primeiro deles é a coesão entre direção e direção de fotografia, havendo momentos em que perde-se a referência do espaço por quebra da regra dos 180º. Em questão de roteiro, apesar de haver bons momentos de humor, há algumas quebras da suspensão de descrença que também atrapalham a imersão, como ao fazer diversas piadas com internet que não fazem sentido entre si: quando os fantasmas morreram se não entendem o que é pesquisar online? Como isso se relaciona ao fazer referência ao ICQ e ao se referir a memes como algo conhecido?
O elemento final que pode distrair os espectadores é a atuação, que remete excessivamente ao exagero da teledramaturgia de novelas. Se esse recurso fosse utilizado de maneira mais clara, seria possível criar uma ferramenta de linguagem, dado que a obra não se passa em uma chave realista. No entanto, as regras internas do filme tratam os momentos como realistas, como ao estabelecer quem pode ou não se comunicar com os fantasmas, e até mesmo pela aparência comum das personagens. Cria-se então essa contradição própria, causando uma estranheza não intencional nos espectadores.
Ainda que haja esses problemas, a experiência de assistir ao longa-metragem é agradável, trazendo os elementos de representatividade para a comédia sem depender exclusivamente de estereótipos para tal. É certamente mais um avanço em relação a conteúdos claramente LGBTfóbicos, ainda que deixe claro que ainda há um grande caminho a ser trilhado.
M3GAN (Gerard Johnstone, 2023)
Para todo fã de horror é simples pensar que a temática de brinquedos que matam pode estar saturada, dadas as franquias criadas a partir de Chucky e Annabelle. O que poderia ter se tornado mais um filme na multidão de terrores lançados entre 2022 e 2023 ganha força por conta da ideia original de James Wan: o longa-metragem não é apenas sobre a boneca-robô assassina, mas sobre a relação de confiança que os seres humanos têm com a tecnologia. E, se fosse necessário provar o ponto apresentado, basta pensar na campanha de marketing realizada no Brasil, com um robô de WhatsApp representando M3GAN e os usuários fornecendo imagens e vozes sem pensar se isso poderia ter consequências.

Acompanhamos a garota Cady (Violet McGraw) que se torna órfã nos primeiros minutos do filme e é levada aos cuidados de sua tia socialmente pouco apta Gemma (Allison Williams). A tia, que é muito mais capaz na robótica, acaba criando M3GAN (Model 3 Generative Android) para fazer companhia para a criança enquanto ela passa pelo luto, mas perde o controle na medida em que a tecnologia parece não conhecer limites para proteger a menina.
Para um espectador que vai com as expectativas de que o filme será aterrorizante e violento como foram outros da produtora Blumhouse, é necessário relembrar que ele foi editado para uma classificação indicativa que englobasse adolescentes. Ou seja, há mais momentos de comédia do que grandes sustos, além de uma quantidade baixa de mortes. Mas exatamente por compreender seu público, criou-se uma linguagem diferente e que reverbera em toda a audiência, de dancinhas e cenas musicais estranhas até o comercial que inicia o filme.
Também é notável que o longa é bem executado e finalizado com apenas 90 minutos de filme. Não há momentos desnecessários ou sobras de roteiro, com a história em três atos tendo início, meio e fim (mas é claro, com abertura para continuações). Apesar de não muito experiente, o diretor Gerard Johnstone é competente ao contar a história, sendo capaz de causar sustos e gargalhadas em grande parte da audiência. Pensar que o filme foi adaptado para ser menos violento, é perceptível que houve grande esforço em manter a história coesa.
E M3GAN é o grande acerto do filme, com um design icônico e que não entra no Vale da Estranheza, algo que ocorre muito frequentemente com personagens robóticos. Sua introdução é tão sedutora que ela cativa toda a audiência, invertendo os papéis de quem seria o vilão do filme. Por uma mistura de figura materna com a inadequação de atos não esperados de uma criança, cria-se uma fixação pelos seus atos.
Talvez a obra seja uma porta de entrada para o terror para uma geração mais jovem e que não foi impactada com grandes filmes do gênero adequados à sua classificação indicativa. É certamente uma obra que foge dos padrões esperados pelo gênero e conseguirá entreter toda a família em toda a sua duração.
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