Textos por Carol Ballan
As Bestas (Rodrigo Sorogoyen, Espanha, 2022)
Apesar do lançamento no Brasil muito tempo após a sua primeira exibição no festival de Cannes de 2022, As Bestas segue causando um forte impacto em quem o assiste. Aclamado tanto pelo público quanto pela crítica, ele consegue mostrar o conflito entre humanos em uma região muito específica da Europa de tal maneira que os espectadores aguardam na ponta da cadeira até o último minuto de resolução do ocorrido.

A Galícia, região espanhola mais rural e que está sofrendo um grande êxodo da população jovem, é escolhida pelo casal francês Olga (Marina Foïs) e Antoine (Denis Ménochet) como local para viver após a sua aposentadoria. Mas além de serem considerados estrangeiros naquela terra, eles não imaginavam que também iriam se deparar com uma difícil escolha: uma empresa que quer construir usinas eólicas propõe a compra das terras do local, sendo eles uns dos poucos a se opor a tal venda. Então passam a ser fortemente perseguidos pelo seu vizinho, em um jogo de ameaças que mostram o conflito entre duas maneiras tanto de viver quanto de ver a vida.
Apesar de não ser dado um histórico específico, percebe-se que os franceses tiveram uma vida relativamente tranquila. Estudaram, viajaram, tiveram uma filha e, quando tudo já estava estabilizado, se mudaram para a região pensando em viver do plantio da terra. Mesmo tendo uma rotina relativamente rígida, os atores expressam a satisfação em fazer o que fazem. Por outro lado, seu vizinho Xan (Luis Zahera) não teve acesso a nada disso, precisando trabalhar com a terra para sustentar seu irmão e mãe. O dinheiro dessa venda poderia possivelmente facilitar a sua aposentadoria e mudança para uma região mais urbana. E ao mesmo tempo, a linguagem que ele conhece é a da violência e da provocação. Ou seja, cria-se com a definição dos personagens esse barril de pólvora prestes a explodir.
O que eleva esse conflito super específico a uma posição de sustentar o conflito entre dois humanos a partir de suas visões de vida e seu desnível de conhecimento formal. O público brasileiro pode até entender o conflito como algo que acontece entre duas pessoas razoavelmente privilegiadas, devido à extrema miséria que é possível de encontrar no nosso país. Mas em algum grau, o conflito se torna uma luta de classes comum e que pode ser encontrada em qualquer ponto do planeta. Ele leva o local ao universal e cria um thriller surpreendente.
Para o público brasileiro, também é curiosa a visão que o diretor trás de uma Europa rural. Estamos mais acostumados a ver os grandes centros urbanos do continente, e quando há algo mais voltado para o interior, normalmente não se fala sobre a vivência diária nesses locais. Ter uma oportunidade de vê-lo de maneira naturalista e com uma fotografia ampla ao captar detalhes da iluminação natural ou da paisagem local é mais raro, mas o diretor consegue fazê-lo sem dificuldades.
O filme tem uma reviravolta que poderia muito facilmente encerrá-lo ou tornar tudo o que vem depois dela irrelevante. Mas há uma opção por continuar contando aquela história, e o fechamento criado é, ao mesmo tempo, satisfatório em uma questão lógica, mas que deixa um amargor na boca. Certamente coloca a Galícia como uma região de interesse em relação à sua produção cinematográfica.
O filme está sendo distribuído pela Pandora Filmes. Verifique as sessões na sua cidade.
Bizarros Peixes das Fossas Abissais (Marão, Brasil, 2023)
Se O Menino e o Mundo (Alê Abreu, Brasil, 2013) ganhou o público internacional com uma indicação ao Oscar de 2016, competindo contra grandes estúdios como a Pixar e o Estúdio Ghibli, dez anos depois surge uma animação com o mesmo potencial de levar público para as salas de cinema. Com uma premissa inesperada e um humor absurdo, o diretor, roteirista e animador Marão mostra um domínio de técnica e narrativa que consegue juntar a magia da animação com ansiedades e peculiaridades de um público mais maduro da animação.

A sinopse já deixa claro qual será o tom da obra, e ela entrega o que é prometido: uma mulher com superpoderes no mínimo peculiares, uma nuvem com incontinência pluviométrica e uma tartaruga com TOC se cruzam em uma aventura inesperada. Em busca de instruções para encontrar um artefato, elas enfrentam todas as crises possíveis, usando uma mistura de humor juvenil com uma sofisticada brincadeira com gêneros fílmicos para entreter, surpreender e até emocionar quem assiste.
Se o público for ao cinema esperando um formato mais fechado e um filme que resolva todas as questões que ele levanta, certamente haverá uma frustração, mas considerando o sucesso de animações mais recentes como Rick and Morty e Love, Death & Robots, compreende-se que a obra tem o seu próprio nicho (e eu me incluo nele). A trama já se inicia no meio da ação, com o uso do superpoder sendo colocado em prática e causando um choque inicial que prepara o público para o que vem pela frente. Um fluxo contínuo de imagens belamente animadas, piadas, soluções que desafiam a lógica e personagens muito carismáticos apesar de sua falta de profundidade, a obra se revela em camadas que te preparam para tudo, menos para o que irá acontecer no final.
O uso de som na obra é surpreendente. A trilha sonora original composta por Duda Larson é um espetáculo à parte, enaltecendo toda a movimentação da animação. Mas além disso, o filme é surpreendentemente silencioso, criando um equilíbrio com a quantidade de imagens que estão sendo mostradas em tela. As falas são muito bem pensadas e editadas, maximizando o potencial do formato ao mesmo tempo em que criam uma tensão constante em relação a qual será o próximo passo.
É difícil poder falar sobre este filme sem comentar o seu final, porém o tamanho de spoiler que seria necessário provavelmente estragaria a experiência para os leitores que, espero eu, se animem com a crítica e decidam assistir o filme. Porém, passado algum tempo e tendo a oportunidade de revê-lo, pretendo fazer uma versão expandida e com spoilers dessa crítica, tamanho meu interesse pela obra.
O filme está sendo distribuído pela Vitrine Filmes, através da Sessão Vitrine. Verifique as sessões na sua cidade.
Servidão (Renato Barbieri, Brasil, 2019)
O final da escravidão no Brasil deveria ter acontecido há mais de 130 anos, com a assinatura da Lei Áurea. Infelizmente a nossa realidade ainda está distante disso. E o que o documentário Servidão faz é mostrar de maneira didática e lógica detalhes do nosso país que provavelmente não sabemos ou não paramos para analisar. Ainda que muitas das informações apresentadas sejam altamente veiculadas, o modo que elas são organizadas e montadas já é um grande feito do diretor e co-roteirista.

Com muitas cenas baseadas em entrevistas e uma longa conversa entre diretor e seus entrevistados, cada um em seu cenário específico, a maior crítica que pode ser realizada é em relação ao formato pouco inovador e que às vezes perde a atenção do espectador pela repetição. Mas isso é mais do que compensado pelo bom uso que é feito dos entrevistados, que têm muito a informar e agregar, e até pelas escolhas de locação, por vezes mostrando o brilho maximalista de uma biblioteca ou explorando a arquitetura mais brutalista das universidades públicas do país.
O que mais marca o longa-metragem são algumas falas memoráveis, ainda que parte de seu contexto tenha se perdido pela demora no lançamento nos cinemas, como as políticas públicas que mudaram um tanto desde as últimas eleições. Isso não descaracteriza a obra ou sua relevância, com uma das falas mais significativas sendo de um africanista branco falando sobre a responsabilidade de cada geração em romper com esse ciclo, e a dificuldade da elite do país em fazê-lo.
É necessário pontuar também o ótimo uso de espaço e dos takes mais filosóficos que o filme apresenta. Os segundos podem não ser a maioria do filme, mas geram uma imagem audiovisual impactante - algo essencial para transmitir a imagem importante de apagamento e solidão que seu discurso narrativo está apresentando.
O filme é muito importante para a compreensão do nosso país, mas é triste pensar que ele vá ser menos reconhecido dentro do nosso território do que fora, como mostrado pela quantidade de festivais internacionais pelos quais ele passou. Mas, possivelmente pela intersecção da crítica realizada com o público que costuma frequentar os cinemas independentes, a mensagem se perca. Seria essencial que pessoas brancas como eu pudessem assisti-lo para compreender o peso e importância de nos alinharmos a uma luta anti-racista.
O filme está sendo distribuído pela O2 Play. Verifique as sessões na sua cidade.
Vidas Passadas (Celine Song, EUA, 2023)
Texto por Jean Werneck
Em sua estreia como diretora, Celine Song traz um amor platônico que vai da infância até a vida adulta.
Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo) tem uma conexão inseparável na infância, contudo a emigração dela para os Estados Unidos os afasta. Anos depois, eles se reencontram para dar um ultimato em sua relação. A cultura sul-coreana vem ascendendo nos últimos anos e o cinema é um de seus principais destaques. Diretores como Bong Joon-Ho e Park Chan-wook - celebrados com os recentes Parasita e Decisão de Partir respectivamente - endossam essa corrente com filmografias sólidas. Celine Song chega para integrar esse cinema com uma voz feminina necessária e um notável longa de estreia.

Vidas Passadas parece um melodrama básico em que torcemos para que o casal protagonista fique junto no final, entretanto sua realização polida acessa sentimentos muitos mais profundos no espectador. Desde a cena de despedida corriqueira após um dia de aula - com um enquadramento que indica que os personagens seguirão caminhos diferentes - até o esperado reencontro em frente a um carrossel - que comunica o laço emocional inerte e circular no qual eles estão - somos envolvidos por um sentimento platônico que realça a melancolia de um romance realista e maduro.
Em contraponto com Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, filme que fala sobre o desapego das relações amorosas de forma abrupta e é citado em algumas cenas, Vidas Passadas se apega a um amor que foi pouco vivido e é muito lembrado. A montagem opta por observar como a saudade flui nos dois individualmente para que o roteiro una, em um mesmo espaço e tempo, uma Nora e um Hae diferentes que tentam ser as pessoas de antes e reviver o que ficou para trás. Há uma honestidade e delicadeza no lento processo de superar o amor e retirar suas raizes do coração de forma cuidadosa para ambas as partes.
Dessa forma, Vidas Passadas descama calmamente as muitas esferas do envolvimento do casal com um olhar atencioso e sincero, enquanto se encaixa como um integrante desse cinema sul-coreano distinto (só pra não confundir com classe social) que vem se firmando cada vez mais.
O filme está sendo distribuído pela Califórnia Filmes. Verifique as sessões na sua cidade.
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