
Nomadland foi mais uma das gratas surpresas ao assistir aos filmes para a cobertura do Oscar 2021. Muito provavelmente por desatenção minha, não conhecia a diretora Chloé Zhao, que aos 39 anos está no seu terceiro longa metragem e mostra que tem um domínio técnico e poético extremamente invejáveis, conseguindo não só contar uma história complexa, mas o fazendo de uma maneira extremamente sensível, diferente em relação ao que normalmente é produzido nos Estados Unidos e pessoal, sendo roteirista, produtora, diretora e editora do projeto.
O longa conta a história de Fern, interpretada de maneira incrível por Frances McDormand , uma mulher que dentro dos colapsos econômicos dos EUA perde seu emprego, tendo que lidar com essa situação e também com o recente luto pela perda do marido. Vivendo em sua van, ela luta todos os dias em busca de novos empregos temporários, até que uma colega explica para ela sobre o estilo de vida nômade com vans, e aos poucos ela se rende a essa ideia, em uma jornada de autodescoberta sobre os significados de lar e pertencimento.
O primeiro aspecto que diferencia bastante a produção é o quanto a sua linguagem é realista, com muitos momentos nos quais não se tem certeza se o filme se trata da realidade ficcionalizada ou de uma ficção hiper-real. O fato da diretora ter um trabalho em filmes anteriores com não-atores faz com que os relatos sobre suas vidas transbordem de realidade e humanidade, e se torna muito difícil não criar empatia com cada um deles, ainda que muitos não tenham muito tempo de tela. A isto é somada a atuação de McDormand que convence seus colegas em cena e cria um ambiente seguro para eles se abrirem. É muito interessante como o filme consegue tirar essas pessoas que se rebelaram contra o sistema pelos mais diversos motivos da invisibilidade. Há algo semelhante no longa-metragem Los Silencios, de Beatriz Seigner, sobre o qual falei aqui (link), mas que nesta obra parece ainda mais entrelaçado na estrutura ficcional.
Além disso, a obra é bastante tocante por tratar de uma jornada pessoal e pouco usual de auto-descoberta sob um ponto de vista feminino, algo que não é retratado com tanta frequência no cinema, ainda mais acompanhado de exemplos reais de mulheres que seguiram pelo mesmo caminho. Algo que a obra faz a todo momento é desafiar qual o conceito de lar, dado que Fern subitamente perde completamente o seu: sem emprego, sem marido, sem casa, sem cidade. Se nos primeiros minutos há um choque ao se perceber a coragem no ato de tornar a sua van o seu novo lar, no desenvolvimento da narrativa isso apenas se intensifica na medida em que ela conquista novos espaços no desenrolar de sua jornada. Aos poucos, há a desconstrução do próprio conceito de lar, com a percepção de que ao encontrar paz consigo mesma, com seu presente e passado. Fern poderia estar em qualquer lugar do mundo, exercendo qualquer função técnica, que a liberdade de viajar ou de escolher se estabelecer em um lugar é o seu lar.
Por fim, além de todas as questões poéticas inspiradoras para uma geração de mulheres, há uma competência técnica muito elevada. Apesar de não haver uma estrutura narrativa clássica, a mistura de uma fotografia incrível por uma parte natural não tão explorada dos EUA e um ritmo de edição interessante fazem com que o filme passe em um piscar de olhos, mas sem que se perca a devida importância dada às cenas, seja quando Fern sente seus desconfortos ao ficar sozinha ou até a sensação de paz ao nadar nua no lago. Não à toa, o filme concorre ao Oscar também nas categorias de Fotografia e Montagem.
Fico feliz em ver mais uma jovem diretora conseguindo abrir o seu caminho no cinema mainstream através de filmes que tenham características bastante pessoais. Com a notícia de que ela também dirigirá o filme Eternos da Marvel, fica a curiosidade sobre como a sua visão agregará ao universo de super heróis. Uma coisa, no entanto, é certa: esse ano -o primeiro no qual duas mulheres disputam o Oscar de melhor direção - tem uma competição acirrada entre as duas que produziram obras espetaculares.

Comments