Atenção: essa crítica contém spoilers sobre o filme.
Logo na primeira cena de O Som do Silêncio a tristeza de não poder ver o filme em uma sala de cinema já se manifesta. Claro, parte por conta da pandemia de COVID-19 que nos afasta há tanto tempo das salas, mas também por conta da necessidade de um sistema de áudio melhor para ouvir o trabalho de mixagem de som primoroso.

A história de um musicista com problemas de audição pode parecer excessivamente melodramática em um primeiro momento, dado que ele está perdendo aquilo que o permite ganhar dinheiro para sobreviver. No entanto, o roteiro é construído de maneira que, apesar de conservadora em relação aos três atos narrativos, consegue trazer bastante emoção e sensibilidade sem cair em um discurso extremamente estereotipado. Ocorre a construção da maturidade de maneira bastante orgânica, dando tempo e espaço para que as mudanças aconteçam no personagem principal, e com as informações sobre ele sendo dadas aos poucos para a quebra dos estereótipos: primeiro, descobre-se que ele toca bateria, depois, que ele mantém uma rotina saudável; mais a frente, que ele é ex-usuário de drogas. Isso, junto a uma atuação brutal de Riz Ahmed que acerta todos os gritos, olhares e silêncios que o filme precisa, constroem um personagem que perdura por dias após assistir ao filme.
O som é um elemento extremamente central, como se pode imaginar, dada a sua temática. O trabalho feito é extremamente imersivo desde a primeira cena na qual se entende a brutalidade da música tocada e o efeito disso na audição, até todos os efeitos utilizados para simular os diversos graus da perda de audição, colocados de maneira muito oportuna no longa, de forma a explicar como o personagem está ouvindo. É um recurso técnico sem o qual o filme perderia grande parte do seu apelo, exatamente porque o espectador poderia não entender o tamanho da impotência causada pela perda deste sentido.
A jornada de amadurecimento do protagonista é em relação a compreender a sua deficiência e tentar aprender a lidar com ela. É impressionante como é fácil se relacionar com as frustrações que ele sente no caminho, tentando sempre remediar o seu problema ao invés de lidar com ele, buscando sempre uma solução quase mágica. É interessante perceber como espectadora quando esse Deus Ex Machina não acontece, dado que ficamos condicionados a aceitá-lo para obter um final que imaginamos ser mais feliz, mesmo que pouco realista. As cenas do casal em Paris após a cirurgia, com a compreensão de que a vida jamais poderá ser como era antes, dado que ambos amadureceram e o relacionamento não ficou cristalizado no tempo como ele imaginara não é o final normalmente vendido, mas é um possível final feliz e mais realista. A negação do problema até que seja impossível lidar com ele acaba entrando na mesma categoria, ainda que se crie essa expectativa de mudança ao longo de todo o segundo ato da trama.
É impossível não mencionar o papel da clínica para deficientes auditivos nesse sentido. Ela mostra que existe outra possibilidade de vida, que existe um outro caminho possível , ainda que haja essa dificuldade de aceitação. É o momento em que além da mudança dos sons, que passam do heavy metal aos passarinhos, as cores do filme também mudam, ficando cada vez mais integradas à natureza. Mas também há alguns momentos que na somatória do longa parecem desnecessários, como a criação de uma tensão romântica entre Ruben - personagem de Ahmed - e a professora da escola.
Além de todas as reflexões que a própria obra gerou, como espectadora brasileira, foi impossível não refletir sobre como esse é um filme tipicamente estadunidense. A questão dos altos custos para a saúde, ainda que complexos para uma cirurgia que o longa-metragem dá a entender que seria secundária, parecem distantes em um país que tem um Sistema Único de Saúde gratuito como o Brasil. Mesmo durante a pandemia e o caos sanitário que vivemos, refleti muito sobre a necessidade de defesa desse aparato, o que é um reflexo muito marginal do filme, mas quase que inevitável de se pensar dada a época de seu lançamento.

Por fim, é também necessário comentar como a atuação de Riz Ahmed é um dos principais fatores para o sucesso do filme, pois ele consegue trazer a variação de paciência a impulsividade que o papel requer. Esse ano, no entanto, ele topa com a concorrência de Chadwick Boseman na categoria de Melhor Ator para o Oscar, indicado por seu trabalho incrível em A Voz Suprema do Blues e que quase certamente ganhará a premiação. Dado seu triste falecimento precoce em uma carreira que estava decolando, é difícil imaginar que esse prêmio seja dado a qualquer outro ator, algo com o qual inclusive concordo.
Adorei sua análise! Assisti ano passado e foi um dos melhores que vi em 2020. Gostei muito! Torço para que o Riz leve o Oscar, mas acredito que irá mesmo para Chadwick.