The Boy and the Heron (Hayao Miyazaki, 2023, Japão)
The Boy and the Heron já se torna especial quando pensamos em uma animação abrindo um grande festival internacional. Saber que esse pode ser o último filme de Hayao Miyazaki, agora com 82 anos, e que foi um dos grandes responsáveis pela popularização da animação japonesa no resto do mundo também torna essa experiência especial. E, pensando na minha experiência pessoal, ter esse como o primeiro filme assistido em um dos teatros que exibem filmes no TIFF foi uma experiência ainda mais deliciosa.

É interessante que o título em inglês tenha ignorado o título japonês, que se traduziria para How do you live? (ou Como você vive? em português). Contando a história de Mahito, um garoto que perdeu a mãe em um incêndio após um bombardeio ocorrido na II Guerra Mundial. Com seu pai casando com a irmã mais nova da mãe, eles acabam indo viver no interior. Mas Mahito não se adapta bem a essa nova vida, e dentro de sua adaptação ele se depara com duas coisas importantes: uma cópia do livro How do you live?, de Genzaburo Yoshino, que sua mãe pretendia lhe dar quando mais velho e que fala sobre o processo de amadurecimento; e uma garça cinza e agressiva, que depois ele descobre que pode falar e que acaba levando o garoto para uma aventura em outra dimensão.
O filme parece um encerramento ideal para uma carreira que desafiou o que se conhecia como animação baseada no sistema estadunidense de produção. Claro, o filme precisa ser analisado como obra sozinha, mas também não se pode dissociar a temática presente em toda a obra do diretor que se repete aqui, com a menção à traumática II Guerra Mundial, aventuras incríveis e periquitos assassinos. A sensação da infância se sentindo diferente das outras crianças e a forte relação familiar e com as empregadas da casa também aparece, sendo mais um tópico importante para analisar toda a sua obra.
É difícil fazer uma análise complexa sobre este filme, em específico, tendo o visto apenas uma vez. Percebe-se um cuidado com a criação de camadas de significados entre a mais superficial, do que está acontecendo, até as mais profundas, de significações de sonhos recorrentes e o grande questionamento sobre o sentido da vida. Percebe-se o talento e a dedicação em cada frame da obra, que consegue equilibrar perfeitamente a diversão onírica à filosofia de um senhor repensando sua vida e carreira.
Pretendo fazer análises mais detalhadas sobre o filme assim que ele estiver disponível para que possa vê-lo mais algumas vezes. Por enquanto, deixo apenas o conselho de que todos que puderem o vejam com seus próprios olhos, na tela grande. Essa experiência cinematográfica continua sendo única e mágica.
Homecoming (Anssi Kömi e Suvi West, 2023, Noruega e Finlândia)
Uma informação essencial para compreender o documentário Homecoming é saber quem é o povo sámi, conhecido em portugues como lapões. Ocupando uma grande região no norte da Europa que se divide entre Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. Infelizmente, como a maioria dos povos indígenas, eles passaram por situações de exploração, cristianização e desmembramentos de terras bastante amplos, tendo se incorporado em partes ao modo de vida escandinavo, mas com grupos ainda vivendo no extremo norte global.

Essa introdução não é dada pelo filme, mas os acontecimentos são de fácil compreensão: finalmente, após muitos anos de exploração e colonialismo, museus decidem repatriar alguns objetos sámi que estavam em exposição, tendo sido retirados à força de seu povo. E as documentaristas de origem sámi podem filmar esse processo e também se reencontrar com a origem de seus povos e trazer conscientização ao público. O método que elas escolhem é o de aproximar os objetos que estavam em redomas ou guardados em caixas às pessoas para as quais eles têm significado, tirando a condição de uma curiosidade para ser vista por turistas para um objeto com história e significado para quem sabe seu valor. O formato utilizado é bastante clássico, com a filmagem dos acontecimentos de maneira delicada, e acompanhando as diretoras enquanto elas compreendem suas próprias origens.
Apesar de uma técnica bem realizada e cenas emocionantes, há uma dificuldade de se relacionar com o seu conteúdo sendo de um país latino. Ele recebeu críticas boas e que o colocam como um paradigma em relação aos museus, que começam a assumir sua culpa no processo colonial. E por mais que a técnica seja adequada e que as documentaristas tenham as melhores intenções - até por se estar falando de seu próprio povo - a falta de universalidade é um ponto que recairá a todos os espectadores de países que passaram por processos coloniais e que não são em nada contemplados pela mudança de atitude europeia.
Talvez o filme possa ser um pontapé para que essas questões sejam levantadas em diferentes regiões, mas é difícil acompanhar a emoção que deveria ser a coluna vertebral do documentário quando se pensa em suas próprias origens. Saber como será a sua recepção e reverberação talvez seja mais significativo do que assistir ao momentos de emoção das realizadoras.
Andragogy (Wregas Bhanuteja, 2023, Indonésia)
Andragogia, a tradução do título do filme, é o conjunto de técnicas utilizadas para o ensino de adultos, contando com o fato de que eles já têm certa experiência de vida. Contando a história de um mal entendido que é filmado e viraliza nas redes sociais, o filme consegue levar até as últimas consequências os efeitos da Internet para a vida das pessoas. O que acontece é uma discussão entre a Sra. Prani (Sha Ine Febriyanti) e um homem mal educado na fila para comprar comida, que é retirada de contexto e viraliza na internet. Só que ele mostra o efeito dos acontecimentos na vida de todos da casa: Sra. Prani, professora que lida com gerações de jovens há anos, seu filho Muklas (Angga Yunanda), que trabalha como influenciador digital, sua filha Tita (Prilly Latuconsina), que faz sucesso com uma banda anticapitalista, e seu marido Didit (Dwi Sasono), que está se recuperando de um período de depressão bipolar passado em uma clínica psiquiátrica.

Justamente por não tratar nenhum dos personagens como completamente bom ou ruim que ele consegue aprofundar algo que poderia se tornar apenas a visão de uma vítima das circunstâncias. Sra Prani, por exemplo, tem algumas metodologias de ensino questionáveis, com o uso de técnicas com grande potencial de traumatizar crianças. Seu filho, completamente imerso no mundo da internet, muitas vezes perde a bússola moral da convivência em família em prol de seus seguidores. E a própria internet esquece que está lidando com pessoas de carne e osso, sendo rápida para apontar culpados mas ignorando as idiossincrasias que cada pessoa traz com a sua vivência.
O elemento de maior destaque da obra é a atuação aliada a um bom roteiro e direção. Os personagens são complexos e, justamente por isso, críveis. A apresentação de seus defeitos funciona positivamente para a história criando nuances, e as conexões entre personagens são mostradas com um realismo raramente visto. Ele consegue atualizar muito bem a discussão sobre a vida online que acontece em todas as esferas da vida real para o universo audiovisual.
E ele também mostra como a alegria de assistir festivais está nas surpresas que se pode ter. Uma sessão noturna de um filme indonesio, cuja cultura fílmica eu conheço muito pouco, escolhido apenas pela sinopse interessante e o encaixe perfeito na agenda rapidamente se torna uma das histórias com o maior potencial de conversas e reflexões que eu poderia encontrar.
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