Por Carol Ballan:
Existem algumas coincidências que se tornam eventos canônicos pelo acontecimento em momento de astros alinhados. Assim como no caso de Léa Garcia, que morreu em Gramado na noite anterior à sua homenagem, em The Zone of Interest o autor do livro que inspirou o filme, Martin Amis, faleceu na noite da estreia do longa-metragem em Cannes.

A principal observação sobre o filme sempre será sobre a coragem de Jonathan Glazer em realizá-lo após uma década afastado da direção. Ele é a realização audiovisual do conceito de Hannah Arendt de banalidade do mal, e colocá-lo em produção em um mundo pós-Covid e com o crescimento mundial da extrema-direita é uma tarefa complexa e que poderia dar muito errado, mas tem sucesso nas mãos de um realizador talentoso.
O principal para fazer a obra funcionar era o equilíbrio: conseguir retratar uma família que não fosse excessivamente boa ou má, mas sim que funcionasse da maneira que qualquer família funciona. Colocar a centralidade da trama no drama doméstico ao invés de apenas pular o muro da casa e mostrar o horror real é uma maneira astuta de trazer toda a problemática sem a necessária evocação dos fantasmas da crueldade. Esses são guardados, também sabiamente, para os últimos minutos da trama, deixando o espectador completamente desnorteado com seu impacto.
Apesar das alusões ao acontecido, do uso de saudações nazistas e da compreensão clara sobre o que está acontecendo, a falta de conversa sobre o assunto entre a família é o que torna o roteiro tão interessante. Ao mesmo tempo, detalhes absolutamente assustadores e até difíceis de compreender no primeiro momento, como quando as roupas que chegam na casa sendo divididas entre as mulheres, geram a reflexão pós-filme que permanece ocupando a mente de quem o assiste. É no jogo entre o que é dito e não dito, mostrado e não mostrado, e na paciência de guardar o peso para os momentos finais, que a obra se diferencia dos clássicos que arrastam a dicotomia entre heroísmo e vilania.
A técnica, além do texto, também faz a diferença. O uso de câmeras quase escondidas para capturar as cenas da família no jardim causam uma naturalidade que dificilmente seria obtida de outra maneira. O talento dos atores principais Sandra Hüller e Christian Friedel também não pode ser desprezado nesse sucesso, com a transmissão não caricata de pessoas que sabem que estão realizando o mal, mas supostamente com um objetivo principal. Juntos, os dois fatores permitem que a obra ganhe força. E somados à direção minimalista, mas detalhada, geram um filme difícil de esquecer.
por Jean Werneck:
Com o elogiado Zona de Interesse, Jonathan Glazer aborda o sofrimento do holocausto sob a ótica impiedosa de uma feliz família nazista.
O comandante Hoss (Christian Friedel) e sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) vivem a vida que sempre sonharam com seu frondoso jardim ao lado do campo de concentração em Auschwitz. Zona de Interesse ultrapassa a curiosa sinopse e o impressionante cartaz e proporciona uma experiência cinematográfica que deixa o espectador catatônico em seu desfecho.

Cada vazio é esmagador, cada silêncio é ensurdecedor e cada cor é incolor. A partir desse paradoxo de sensações causadas, a direção de Glazer apresenta o absurdo do ideal de bem-estar nazista sem precisar explicitar isso, já que tal atrocidade faz esse trabalho por si só. A obra escolhe ir na contramão de filmes como A Lista de Schindler ou O Menino do Pijama Listrado - que abordam a dor dos judeus em detalhes durante a Segunda Guerra Mundial - com intuito de evitar a espetacularização do sofrimento deles, mas gerar a mesma ânsia revoltante frente a tamanha desumanidade. Aspectos cotidianos, como mostrar o jardim para as visitas, apagar as luzes antes de dormir ou diálogos entre o casal se tornam aterrorizantes frente ao custo de cada vida sacrificada para manter essa realidade destoante. O dia a dia dessa família que apenas quer ser feliz vem como um soco no estômago por sabermos o que verdadeiramente está por trás de seus dramas e sorrisos: morte, tortura, intolerância e ódio.
Além dessa argumentação perspicaz, o longa acompanha uma parte técnica fenomenal. A câmera estática do diretor observa os ambientes com distanciamento o suficiente para que possamos adentrar a dinâmica familiar sem sermos cúmplices dos atos inescrupulosos dos quais os personagens participam. Ao invés de focar na dramaticidade gerada por movimentos de câmera, a produção capta, por meio da edição de som, os gritos sussurrados por judeus que sofrem do outro lado do quintal e usa o formalismo como expressão de sua semiótica. A cena final do Coronel descendo a escada obscura, após dar o aval para uma operação genocida, aponta para seu destino infernal. Igualmente, a incrível performance de Sandra Hüller - que brilhou esse ano no Festival de Cannes nesse papel e em Anatomia de uma Queda - nos choca por representar o narcisismo de uma protagonista tão cruel.
Por fim, a obra ainda traz cenas em preto e branco negativo que contrastam seu tom sombrio e caridoso com o vivido colorido dos dias de glória mortais dos nazistas.
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