Reflexões Coloniais Por Outros Olhos

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Falando um pouco sobre a realizadora antes de iniciar a crítica do filme, Lucrecia Martel talvez seja uma das diretoras com maior reconhecimento de crítica na atualidade, tendo conseguido o reconhecimento internacional a partir de seus primeiros filmes. Em 2019 presidiu o júri do Festival de Veneza, onde defendeu cotas para diretoras e se recusou a assistir à sessão de gala de O Oficial e O Espião, filme de Roman Polanski, o que deixa claro seus posicionamentos como mulher, além de diretora. Com uma filmografia pouco extensa, mas muito aclamada, a argentina está conseguindo um espaço que poucas mulheres conseguiram ocupar.

Em Zama, além do protagonista óbvio Don Diego de Zama, oficial espanhol que aguarda a sua transferência para Buenos Aires, parece que há dois protagonistas fantasmagóricos que o cercam: o tempo e a burocracia. O tempo talvez seja o que desaproxime alguns espectadores do filme, porque é propositalmente dilatado, lento, e quer deixar claro que as mudanças na sociedade quase não aconteciam, e quando aconteciam, era nesse ritmo lento. E a burocracia aparece pela condição de colonizados, uma vez que a aprovação dessa transferência teria que vir de uma Espanha que parece indiferente aos dramas ocorridos em sua colônia, e cartas demoram a ir e vir. Os dois elementos se misturam fazendo com que Zama pareça um Giovani Drogo, protagonista do Deserto dos Tártaros (Dino Buzzati, 1940), hipnotizado pelas promessas, mas incapaz de se mover.

Compensando a dilatação do tempo, que pode distanciar o espectador, as técnicas de fotografia e som parecem trazê-lo para dentro da narrativa. O desenho de som é realizado de maneira extremamente imersiva, parecendo um eco do interior dos personagens que, diferentemente do exterior, está sempre em ebulição. As técnicas são, na verdade, uma marca registrada da diretora, que compara a experiência com a submersão em uma piscina, quando se ouve um eco do mundo externo e os sons de seu interior. A fotografia trás as diferenças entre uma terra alienígena àqueles colonizadores através do contraste entre cores e texturas, algo que conversa bastante com a direção de arte ao trazer os costumes europeus como as luvas e perucas para uma terra onde elas não fazem sentido. Assim, ainda que a edição corrobore com a lentidão com os cortes mais lentos e as cenas longas, há uma fotografia rica em detalhes e com muita ação ocorrendo em plano de fundo entretendo o espectador.

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Há também uma discussão muito importante em relação à formação da América Latina: o apagamento das populações negra e indígena. Praticamente não há falas desses personagens, e parece que sempre há europeus decidindo ou tentando decidir quais seriam os seus destinos. Isso acaba se tornando uma espécie de tese da diretora sobre a fundação de seu próprio país, sobre os sacrifícios que foram feitos, através do silêncio ao invés de dar a voz. Aqui, dando um pequeno aviso de spoiler sobre o final do filme, essa tese se torna ainda mais interessante quando mostra que Vicuña na verdade era apenas um ideal de banditismo, uma alcunha, e que toda aquela busca fora por algo que sequer existira materialmente.

É realmente uma visão nova sobre o colonialismo, ainda que a história como contada por Martel tenha um quê de fantástica (não à toa, conterrânea de Jorge Luís Borges, pai do realismo fantástico na literatura). Pensar em questões da masculinidade e seus reflexos na atualidade dos países que foram colonizados acaba sendo um reflexo das discussões trazidas pelo filme, dado que as vozes que nele se fazem ausentes são as mesmas que até hoje raramente são ouvidas. É realmente um filme sobre o passado que nos mostra como ainda não conseguimos sair desse ciclo, executado com primor e que cria esse diálogo com o presente dos países que foram colonizados.

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